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Da crise às lutas da habitação
Simone Tulumello
2018
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Da crise às lutas da habitação
Simone Tulumello
2018
Artigo retirado da edição 10 do Jornal Rosa Maria. Esta edição poderá ser consultada na íntegra aqui.

Registo da mobilização contra o despejo dos moradores da Rua dos Lagares, em 2017. Fonte: Habita Coletivo


Um breve passeio pela Mouraria permite observar uma série de prédios desabitados mas vedados também a qualquer tipo de ocupação
Um mercado imobiliário quase adormecido transforma-se de repente numa panela de pressão, sempre à beira do estrondo final. Como evitá-lo? Este é um retrato de dezenas de famílias, que são na verdade um espelho do bairro, da cidade e do país.
Quando, no início do verão de 2017, dezasseis famílias residentes na Rua dos Lagares receberam a notícia de que o prédio onde viviam tinha sido vendido e que, daí a poucos meses, os novos proprietários não iriam renovar os contratos de arrendamento, talvez não tenham imediatamente reparado que o caso era paradigmático das transformações recentes da Mouraria e dos outros bairros históricos de Lisboa. A cidade está na moda: atrai turistas, startuppers, estudantes estrangeiros, reformados de classe média... e também especuladores imobiliários, todos aliciados pelas condições fiscais favoráveis introduzidas durante os anos da austeridade - Vistos Gold, estatuto de Residente Não Habitual, isenções para fundos imobiliários, entre outras.
Se antes o problema do centro histórico de Lisboa era a péssima qualidade do parque habitacional e poucos lá queriam viver, hoje existe uma enorme pressão imobiliária, multiplicada pela reforma de 2012 dos contratos de arrendamento e pelo Novo Regime de Arrendamento Urbano (que muitos conhecem como Lei das Rendas ou Lei Cristas, o nome da deputada e líder do CDS-PP). O resultado é que os antigos residentes estão a ser expulsos de bairros como a Mouraria, e as famílias, sobretudo jovens, que aspirariam lá viver encontram poucas e caras oportunidades, pois os senhorios preferem arrendar por períodos curtos ou transformar apartamentos em alojamentos locais. Um número ajuda a compreender a escala do fenómeno especulativo: de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), nos primeiros seis meses de 2018 mais de 230 unidades imobiliárias foram transacionadas na Mouraria. Mais de um décimo do parque habitacional do bairro foi vendido e comprado em poucos meses, com valores médios acima dos 3.500 euros por metro quadrado, claramente incompatíveis com as capacidades financeiras de quem ganha o pão em Lisboa e quer comprar para ali viver.
As dezasseis famílias da Rua dos Lagares são a perfeita representação da Mouraria: famílias portuguesas que nasceram, cresceram e envelheceram no bairro, lado a lado com imigrantes nepaleses chegados nos últimos dez, vinte anos. As famílias da Rua dos Lagares representam também as peculiaridades do tecido social da Mouraria, a sua capacidade de organização; capacidade, esta, que teve um papel central nos anos em que a regeneração urbana foi benéfica para os residentes – e que o Rosa Maria acompanhou até 2015. As famílias da Rua dos Lagares então decidiram não estar à espera do despejo: perceberam que o direito à habitação é uma construção coletiva e não individual; e foram à procura de apoio. Nasceu assim a mobilização da Rua dos Lagares, liderada pelas mulheres do prédio, lançada publicamente com uma sardinhada solidária na noite de Santo António e apoiada por associações como a Habita e outras pessoas, sobretudo jovens, muitos deles estrangeiros.
A mobilização tinha como objetivo principal a Câmara Municipal. Por um lado, reivindicava-se o dever de a Câmara intervir para proteger as populações residentes nos bairros históricos – por exemplo mobilizando o amplo património municipal existente. Pelo outro, sendo 2017 ano de eleições autárquicas, a mobilização da Rua dos Lagares foi uma das peças que fizeram do tema da habitação o mais quente da campanha eleitoral. Afinal, a autarquia negociou com a empresa proprietária do prédio uma renovação dos contratos por cinco anos, a troco de simplificações para outras operações imobiliárias. As famílias da Rua dos Lagares vão ficar na Mouraria, pelo menos durante mais alguns anos. Não sabemos exatamente quantas famílias não tiveram a força de se organizar e acabaram expulsas: a crise imobiliária aprofunda-se nos bairros históricos e alastra-se fora do centro – em 2017, os aumentos mais significativos dos preços da habitação verificaram-se na Amadora, por exemplo.
Se até ao final de 2014 o tecido social da Mouraria foi capaz de tirar proveito das transformações induzidas pelas políticas de regeneração urbana, as coisas mudaram radicalmente nos últimos anos, e o turbilhão económico e social da nova centralidade global de Lisboa não parece estar a beneficiar os residentes.
O caso da Rua dos Lagares demonstra que parar despejos é pontualmente possível, mas também que é preciso organizar-se além da escala de bairro para contrariar tendências que vêm de longe – e que sem um papel significativo da Câmara Municipal na proteção do direito à habitação, os bairros como a Mouraria tornar-se-ão rapidamente parques temáticos para quem lá não vive e não trabalha.
Quando, no início do verão de 2017, dezasseis famílias residentes na Rua dos Lagares receberam a notícia de que o prédio onde viviam tinha sido vendido e que, daí a poucos meses, os novos proprietários não iriam renovar os contratos de arrendamento, talvez não tenham imediatamente reparado que o caso era paradigmático das transformações recentes da Mouraria e dos outros bairros históricos de Lisboa. A cidade está na moda: atrai turistas, startuppers, estudantes estrangeiros, reformados de classe média... e também especuladores imobiliários, todos aliciados pelas condições fiscais favoráveis introduzidas durante os anos da austeridade - Vistos Gold, estatuto de Residente Não Habitual, isenções para fundos imobiliários, entre outras.
Se antes o problema do centro histórico de Lisboa era a péssima qualidade do parque habitacional e poucos lá queriam viver, hoje existe uma enorme pressão imobiliária, multiplicada pela reforma de 2012 dos contratos de arrendamento e pelo Novo Regime de Arrendamento Urbano (que muitos conhecem como Lei das Rendas ou Lei Cristas, o nome da deputada e líder do CDS-PP). O resultado é que os antigos residentes estão a ser expulsos de bairros como a Mouraria, e as famílias, sobretudo jovens, que aspirariam lá viver encontram poucas e caras oportunidades, pois os senhorios preferem arrendar por períodos curtos ou transformar apartamentos em alojamentos locais. Um número ajuda a compreender a escala do fenómeno especulativo: de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), nos primeiros seis meses de 2018 mais de 230 unidades imobiliárias foram transacionadas na Mouraria. Mais de um décimo do parque habitacional do bairro foi vendido e comprado em poucos meses, com valores médios acima dos 3.500 euros por metro quadrado, claramente incompatíveis com as capacidades financeiras de quem ganha o pão em Lisboa e quer comprar para ali viver.
As dezasseis famílias da Rua dos Lagares são a perfeita representação da Mouraria: famílias portuguesas que nasceram, cresceram e envelheceram no bairro, lado a lado com imigrantes nepaleses chegados nos últimos dez, vinte anos. As famílias da Rua dos Lagares representam também as peculiaridades do tecido social da Mouraria, a sua capacidade de organização; capacidade, esta, que teve um papel central nos anos em que a regeneração urbana foi benéfica para os residentes – e que o Rosa Maria acompanhou até 2015. As famílias da Rua dos Lagares então decidiram não estar à espera do despejo: perceberam que o direito à habitação é uma construção coletiva e não individual; e foram à procura de apoio. Nasceu assim a mobilização da Rua dos Lagares, liderada pelas mulheres do prédio, lançada publicamente com uma sardinhada solidária na noite de Santo António e apoiada por associações como a Habita e outras pessoas, sobretudo jovens, muitos deles estrangeiros.
A mobilização tinha como objetivo principal a Câmara Municipal. Por um lado, reivindicava-se o dever de a Câmara intervir para proteger as populações residentes nos bairros históricos – por exemplo mobilizando o amplo património municipal existente. Pelo outro, sendo 2017 ano de eleições autárquicas, a mobilização da Rua dos Lagares foi uma das peças que fizeram do tema da habitação o mais quente da campanha eleitoral. Afinal, a autarquia negociou com a empresa proprietária do prédio uma renovação dos contratos por cinco anos, a troco de simplificações para outras operações imobiliárias. As famílias da Rua dos Lagares vão ficar na Mouraria, pelo menos durante mais alguns anos. Não sabemos exatamente quantas famílias não tiveram a força de se organizar e acabaram expulsas: a crise imobiliária aprofunda-se nos bairros históricos e alastra-se fora do centro – em 2017, os aumentos mais significativos dos preços da habitação verificaram-se na Amadora, por exemplo.
Se até ao final de 2014 o tecido social da Mouraria foi capaz de tirar proveito das transformações induzidas pelas políticas de regeneração urbana, as coisas mudaram radicalmente nos últimos anos, e o turbilhão económico e social da nova centralidade global de Lisboa não parece estar a beneficiar os residentes.
O caso da Rua dos Lagares demonstra que parar despejos é pontualmente possível, mas também que é preciso organizar-se além da escala de bairro para contrariar tendências que vêm de longe – e que sem um papel significativo da Câmara Municipal na proteção do direito à habitação, os bairros como a Mouraria tornar-se-ão rapidamente parques temáticos para quem lá não vive e não trabalha.


