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A rua onde cabem - e se escondem - todos os ofícios

Nuno Franco e Jorge Barata
2018

Artigo retirado da edição 10 do Jornal Rosa Maria. Esta edição poderá ser consultada na íntegra aqui.


#mundonamouraria
#históriadoterritório




Registos fotográficos do movimento na Rua do Benformoso, bem como de alguns negócios locais 

Quem hoje o vê talvez não imagine que no Benformoso nasceram e cresceram profissões agora extintas, que ajudam a contar parte da história do bairro e até do país. Uma viagem a um passado não tão longínquo, mas cada vez mais distante.

No século passado, a Rua do Benformoso era um verdadeiro centro comercial a céu aberto. Quem o diz é Jorge Barata, oito décadas de vida na Mouraria. A rua era um ponto de passagem obrigatória para quem ia para norte, ainda antes de se rasgar a Rua da Palma.

Junto ao chafariz, as varinas vindas da Ribeira vendiam peixe; outros vendiam fruta e hortaliças. O Tio João também ali marcava presença vendendo mexilhões, apregoando a plenos pulmões: “Érre, érre, mexilhão cá estou, ou, ou!” Havia casas de pasto (do latim pastus, qualquer tipo de alimento), como se chamavam as tabernas lisboetas que serviam almoços e jantares. Hoje estas casas desapareceram, substituídas pelas cores dos restaurantes do Bangladesh, do Paquistão ou da China, onde se servem pratos desses países, mas também da Índia ou até do Vietname.

Chegou a existir uma farmácia, um alfaiate, sapatarias, lugares de fruta, hoje mercearias asiáticas, com legumes exóticos ainda desconhecidos dos portugueses, espécies de peixes nunca pronunciadas e carne halal (autorizada pela lei islâmica). Vendiam-se velas de sebo ou de cera, petróleo e azeite usado para alumiar. Também se viam carvoarias (que forneciam o carvão para cozinhar ou para aquecimento), frequentemente a funcionar a meias com as tabernas. Enfim, de tudo um pouco: uma ourivesaria, capelistas (ainda sobrevive uma loja deste tipo), uma torrefação de café (comércio que desapareceu com o fecho da Café Saúde, na Rua Marquês Ponte de Lima, para dar lugar, pasme-se, a um alojamento local), um torneiro metálico, uma oficina de cromagem e uma loja de fazendas.

Existia também uma loja de salsicharia e miudezas e uma leitaria. Nesta leitaria, conta-se, existiu em tempos uma vacaria, que fornecia leite para a população. Era precisamente aí que estava o “Boi Formoso”, boi cobridor de grande porte, que deu o nome a esta artéria – que começou por ser conhecida por Benfica, segundo se julga, por nos tempos dos mouros possuir boas hortas e estar bem situada. Por corruptela, a expressão “Boi Formoso” deu origem a Benformoso.

Mais comércios do Benformoso: um ferrador (profissão com muita procura há 80 anos), um funileiro (além de funis, fabricava diversos utensílios em metal), uma fábrica de caixões para funerais, uma ervanária, uma tinturaria (para limpeza de fatos a seco), uma fábrica de mármores, uma livraria, uma fábrica de cestos de verga, uma fábrica de gelados, um arameiro (fabricava e vendia arame), uma loja de máquinas de costura (hoje só há uma na Rua dos Cavaleiros) e um armazém de bananas. Mas o rol não fica por aqui: era na Rua do Benformoso que ficava o armazém dos cenários do desaparecido Teatro Apolo – cenários esses destruídos por um violento incêndio. Lembro-me ainda da padaria e fábrica de bolos, onde vinha várias vezes dar vazão à minha gulodice, quando para a Mouraria vim viver. E a Escola Primária n.o 26, segundo testemunho de alguns moradores mais velhos.

Hoje ainda existe o Centro Escolar Republicano Almirante Reis, onde se ensinavam aos mais desfavorecidos as primeiras letras. E a colectividade da Casa da Covilhã, que ainda lá está, sem a companhia dos Ami-gos do Minho, que desapareceu há pouco tempo. E, por fim, os famosos bares que a mal-afamaram, e onde a prostituição imperava. E os tuk-tuks, os automóveis, o movimento incessante de pessoas oriundas das mais de 52 etnias que vivem na Mouraria, e que atravessam esta artéria pejada de histórias para contar.