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Engrácias da Mouraria

Marisa Moura
2018

Artigo retirado da edição 9 do Jornal Rosa Maria. Esta edição poderá ser consultada na íntegra aqui.

#históriadoterritório
#investirnobairro



[1] A expressão “obras de Santa Engrácia” advém dos quase 300 anos que uma Igreja hoje conhecida como Panteão Nacional demorou a ser construída. Normalmente aplica-se a expressão quando se quer falar de algo que está a demorar muito tempo a ser feito e terminado



O edifício considerado a primeira “obra de Santa Engrácia”, o Panteão Nacional





Residências Martim Moniz, da EPUL Jovem





Jardim da Cerca da Graça, num final da tarde de domingo

Os novos prédios do Martim Moniz fazem um exemplar jus à expressão “obras de Santa Engrácia”. [1] Com onze anos de atraso, só ficaram prontos no passado mês de Dezembro. Outras “engrácias” aqui na zona são o Centro de Inovação da Mouraria (CIM), inaugurado em Maio, e o Jardim da Cerca da Graça, em Junho. Nenhuma destas obras derrapou três séculos como a mítica Igreja de Santa Engrácia, mas merecem atenção.

Em matéria de corrupção, o urbanismo (a par da saúde) é das áreas mais periclitantes, segundo o primeiro Relatório Anticorrupção da União Europeia, publicado no ano passado pela Comissão Europeia. Para Portugal, o documento sugere estas medidas: “reforçar a prevenção, detecção e sensibilização relativamente aos conflitos de interesses no âmbito dos contratos públicos”, “reforçar a acção preventiva em matéria de financiamento dos partidos” e “avaliar uma amostra representativa de decisões de planeamento urbano sobre projectos concluídos recentemente”. Olhemos, pois, para a “amostra representativa” da Mouraria. Antes disso, façamos ainda um parenteses para responder a esta pergunta: Como é que as obras públicas financiam os partidos?
 

O esquema da “derrapagem”

O esquema tem sido descrito por Paulo de Morais, rosto nacional da luta contra a corrupção e candidato à Presidência da República. Sintetizando: a construtora oferece uma “luva” a alguém da autarquia para garantir uma empreitada. O intermediário (militante partidário e funcionário da autarquia) retém 40% e dá 60% ao partido. Em troca, a construtora ganha favores do Estado, desde adjudicações de obras públicas a licenciamentos ilegais. Nos concursos, estes financiadores partidários apresentam propostas de baixo valor, ao ponto de afectarem a sustentabilidade da própria empresa. Assim conseguem as melhores pontuações, pois nos concursos públicos ganha a proposta mais barata. Mas depois, já com a obra em curso, surgem necessidades extra de investimento para terminar a obra. Começam então os ziguezagues, sem que as autarquias peçam contas à empresa, que começa a falhar prazos e orçamentos.

Os exemplos da Mouraria ilustram as situações propícias a estas práticas lesivas. Não significa que tenham aqui ocorrido efectivamente, mas olhemos para estas “engrácias”. Os atrasos, só por si, merecem um ponto de situação.



Epul Martim Moniz: o absurdo

Corria o ano de 2001 quando a empreitada foi adjudicada pela EPUL (Empresa Pública de Urbanização de Lisboa) à construtora espanhola Ferrovial, no mandato do socialista João Soares. Seriam sete milhões de euros para habitação jovem. Primeiro, houve atrasos devido a achados arqueológicos. Depois, com a subida do social-democarata Pedro Santana Lopes ao poder, parou-se porque o autarca decidiu ajustar o projecto às “características históricas do local”. Sucederam-se os desentendimentos com a Ferrovial (que acusava a autarquia de faltar aos pagamentos), a falência de um empreiteiro, e a necessidade de reabrir novos concursos públicos para que as obras se concluíssem.

A Habitâmega Construções S.A. ficou encarregue pela obra num concurso de Dezembro de 2010, mas acabaria por ser a Constragraço – Construções Civis, Lda. a concluí-la, tendo sido essa empreitada adjudicada em Agosto de 2014. Quatro meses depois, nasceram então as Residências Martim Moniz, da EPUL Jovem. Os jovens, esses, já se tornaram adultos. E alguns dos que fizeram as primeiras reservas tiveram de andar pelos tribunais para reaverem os investimentos. A maior parte das vendas realizou-se em Novembro passado, num leilão que partiu de uma base de 4,7 milhões de euros e rendeu cerca de 20 milhões, boa parte dos quais oriundos de investidores chineses.

A obra esteve sempre sob tutela da EPUL, a empresa municipal que recebeu ordem de extinção em 2013 e que ficou efectivamente extinta em Dezembro passado. Isto após acusações de gestão danosa que incluíram mediáticos processos judiciais – o caso das remunerações indevidas aos gestores da empresa (penas de prisão suspensa decretadas em 2010) e o Caso Braga parques, sobre a permuta de terrenos do Parque Mayer e da Feira Popular (todos os arguidos absolvidos em 2014).

Na Praça Martim Moniz, os negócios com a Bragaparques também trouxeram problemas. Terão sido pagos 10 milhões de euros indevidos, segundo uma investigação do jornal i em 2013. A empresa ganhou, em 1996, o concurso público que incluía a construção do parque de estacionamento subterrâneo e a sua exploração por 75 anos, e obras à superfície, como as fontes. Mas essas, segundo o i, terão acabado pagas pelo erário público. Com onze anos de atraso, nasceram finalmente os prédios do Martim Moniz. O Jardim da Cerca e o Centro de Inovação da Mouraria são outras obras que merecem especial olhar.



Jardim da Cerca e o escândalo partidário

Outra “obra de Santa Engrácia” é o Jardim da Cerca da Graça, na Calçada do Monte, entre a Mouraria e a Graça. O “maior jardim público no centro histórico da cidade” é uma iniciativa de José 
Sá Fernandes, vereador da Estrutura Verde e Energia. Passaram vinte anos entre as suas primeiras diligências e a inauguração, no passado dia 17 de Junho.

Em 1995, Sá Fernandes, como cidadão, escreveu uma carta à câmara a sugerir a obra. Em 2005, enquanto candidato independente pelo Bloco de Esquerda, fez dela uma promessa eleitoral. Em 2009 a construção foi aprovada em reunião de câmara, prevendo-se a inauguração em 2011. A adjudicação da obra ocorreria somente em Dezembro de 2012, pois demoraram as burocracias com o proprietário do terreno: o Ministério da Defesa. O corte da fita ficaria então agendado para Agosto de 2014, mas derraparia quase um ano. A empreitada esteve a cargo da construtora Fitonovo, que entretanto passou a chamar-se Perene S.A., após o escândalo de corrupção na casa-mãe, em Espanha, para financiamento ao partido socialista espanhol (PSOE).

No ano passado, a câmara justificou o atraso com a descoberta de ossadas humanas (O Corvo, 19/01/2014). Depois a construtora diria que as causas residiam na falta de pagamentos por parte da câmara (Público, 26/98/2014). Facto refutado por Sá Fernandes, que, no mesmo artigo do Público, contrapôs uma causa abstracta: “contingências da empreitada”. E voltou a refutar, agora, em declarações ao ROSA MARIA. O atraso “deveu-se essencialmente aos achados arqueológicos”, afirmou Sá Fernandes após a inauguração. “Não houve qualquer problema em relação à empresa em Portugal. Foi um concurso público e o caso português é totalmente transparente”, sublinhou o vereador.

A Fitonovo (agora Perene) entrou em insolvência em Espanha na sequência de uma investigação sobre enriquecimento ilícito a um antigo assessor do PSOE no município de Sevilha, Domingo Enrique Castaño. O dono da Fitonovo, Rafael Gonzalez Palomo, detido em Julho de 2013, confessou ter entregado 30 mil euros a esse funcionário. Por cá, o Jardim da Cerca, entretanto, abriu azarado. Além de faltar a segunda entrada, pela Graça, logo se abriu uma enorme fissura no pavimento. “Passagem Proibida, zona em reparação. Pedimos desculpa pelo incómodo”, informava a Perene. Os custos totais da obra, segundo Sá Fernandes, rondam os 900 mil euros – cerca de 100 mil acima do custo fixado na empreitada adjudicada à Fitonovo.



CIM, pelo construtor detido

Entre os afilhados de “Santa Engrácia” está também o CIM – Centro de Inovação da Mouraria. A empreitada foi adjudicada, em 2012, à Constrope-Congevia, do empresário Carlos Santos Silva, detido em Novembro no âmbito da Operação Marquês, que pôs em prisão preventiva também o seu amigo, e ex-primeiro-ministro socialista, José Sócrates. Orçamentada em 1,8 milhões de euros, a obra deveria estar pronta em Dezembro de 2013, com inauguração no mês seguinte, mas derrapou 17 meses. A construtora faliu quando faltava um terço dos trabalhos. “Foi preciso fechar a cobertura, para não haver degradação com as condições climatéricas, e gerir os trabalhos com cada um dos sub-em-preiteiros”, esclareceu o vereador do urbanismo, Manuel Salgado, questionado pelo ROSA MARIA durante a inauguração, no passado dia 29 de Maio. Já no orçamento, ter-se-ão poupado cerca de 200 mil euros, ficando pelos 1,6 milhões de euros, segundo Helena Bicho, directora da Direcção Municipal de Projectos e Obras. “Assim que se entrou no terreno em profundidade, percebeu-se que as fundações não exigiam tanto reforço”, esclareceu.

Outra mediática insolvência do construtor Carlos Santos Silva foi a da Conegil, em 2003. Ganhara, em 1997, uma obra que chegou a tribunal, e em que José Sócrates também foi investigado, enquanto secretário de estado do ambiente: a estação de tratamento de resíduos sólidos urbanos da Associação de Municípios da Cova da Beira. Indícios de corrupção levariam a um processo que terminou em 2013, com a absolvição de todos os arguidos.