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Balança mas não cai

Carolina Ribeiro
2018

Artigo retirado da edição 10 do Jornal Rosa Maria. Esta edição poderá ser consultada na íntegra aqui.


#históriadoterritório 



Documento promocional do negócio, de 1955. Fonte: Estação Chronographica (blog)



Balança Leunam Santinho & Costa Lda, atualmente no centro de leilões do Porto. Fonte: Oportunity Leilões

Espaço onde funcionou um híbrido de loja e oficina com mais de quatrocentos aparelhos para se pesar tem os dias contados.

A porta do número 13 da Calçada Agostinho de Carvalho está entreaberta. Há uma ripa de madeira cruzada na diagonal de uma ponta até à outra e uma cadeira a obstruir a entrada. À espreita, Fernando Santos, de 88 anos, abre um sorriso e desmancha a gambiarra, orquestrada para impedir que algum desconhecido apareça ali. Enquanto a equipa de reportagem se acomoda, Fernando aponta para um aparelho embrulhado num saco plástico: “Olhem! Ainda ontem deixaram cá. É uma balança eletrónica sem conserto e certificado. E não vão voltar para buscar.”



A engenhoca avariada é uma entre as mais de quatrocentas balanças (muitas ainda a funcionar) que ocupam o armazém com jeito de museu, onde operou uma loja e oficina comandada por sua família nos últimos cem anos, a Santinho & Costa Lda. São peças de diferentes modelos, cores, materiais, marcas, tecnologias e origens, embriagadas de história. E cujo destino é um ponto de interrogação. O depósito e tudo o que está dentro foi vendido a um empresário moçambicano, que pode pedir para Fernando sair a qualquer momento. “Morreu, acabou. Não tenho mais cabeça para isto”, diz, conformado, porém apegado.



Há uma série de balanças manuais, com uma barra de ferro ao centro e dois pratos pendurados nas beiradas. Há balanças analógicas típicas de consultório médico, que pesam e medem a altura. Há balanças específicas, como uma que foi da Casa da Moeda e era usada para pesar ouro, e a que servia para pesar malas na estação de comboios do Rossio – talvez a preferida de Fernando; vermelha, de pé, da marca holandesa Berkel. Há balanças de fabrico português: Leuman, Tissot, António Pessoa, Medines, Ruby, Averi. Há balanças suspensas, que não ocupavam espaço em balcões de mercearias. Há balanças de pregar na parede. Há balanças automáticas, semi-automáticas e eletrónicas. Há balanças, a sério, para medir músculos. “Quando era miúdo, fazíamos competição para medir quem tinha mais músculos”, diz Fernando. “Tem que apertar as alças laterais com as duas mãos ao mesmo tempo que a balança marca a força.”

Um punhado de ferramentas, correntes, engrenagens, cortadores de frios, medidores de petróleo e azeite e pesos de ferro e de bronze estão sob o mesmo teto. “Este aqui é maciço, tem um quilo. Mas havia muitos pesos falsos, de oitocentos gramas, usados para enganar os clientes.”

Por trás das balanças, está a história de uma família. Fernando e o falecido irmão, Manuel, representam a terceira geração do negócio que pertenceu ao pai, ao avô e a um sócio – estampados em fotografias nas paredes do estabelecimento. Dona Cacilda, uma vizinha que morreu aos 103 anos, também foi emoldurada. Ainda preenchem o espaço uma placa redonda com a marca da empresa, dois recortes de jornais com reportagens sobre o armazém, um diploma da Associação dos Industriais Metalúrgicos e Metalomecânicos, um certificado de presença no colóquio “Medir com rigor” promovido pelo Serviço de Metrologia da Câmara Municipal de Lisboa, realizado em 2005, e um painel ilustrado com instruções de segurança no trabalho. Escondida atrás de uma portinha de madeira, está uma mina de água salobra e um azulejo azul e branco com as imagens de Pai Nosso e Avé Maria. “Dizem que essa água vem do Castelo de São Jorge. Hoje pingam gotas. Mas noutros tempos enchíamos garrafas para beber.”

Também entre “as coisas do passado e as coisas de criançolas”, como diz, Fernando lembra-se de brincar à laranjinha (jogo parecido com o bowling, em que eram usadas garrafas e laranjas), jogar à bola na rua e correr da polícia, ver os trabalhadores entregarem pinho para cozinhar pão no forno de padarias e pegar boleia para ir até o Areeiro, na altura em que o eléctrico não chegava até lá. “Era um bairro muito bom. Havia talhos, mercearias, drogarias, padarias. Agora é tudo estrangeirada. Daqui a dez anos não se vai mais falar português.”

A rotina de Fernando, que já geriu uma equipa de doze funcionários, é hoje sinónimo de tranquilidade. Sem hora marcada, vai ao armazém quase todos os dias para admirar o legado, sai para almoçar no Aviz e volta para ver mais algumas horas a passar. Segue em frente com uma dose de superstição diária. Enquanto assiste ao fotógrafo Hermes de Paula pesar-se na icónica balança que esteve na estação do Rossio, avisa: “Tem de fazer três pedidos: saúde, paz e amor. O dinheiro vem depois.”

Ao despedir-se, Fernando procura dois escudos, com datas de 1975 e 1979, e oferece de recordação à repórter e ao fotógrafo. “Guardem na carteira. E sempre que quiserem muito alguma coisa, dêem um beijinho na moeda e façam um pedido. Isto é um amuleto.”