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Acupuntura urbana em forma de mediação comunitária // Nuno Franco
Maria Ribeiro
2023
Nuno viveu a sua infância no Alto de São João, mas sempre frequentou o bairro da Mouraria, onde viviam os seus avós e onde, inclusive, o seu pai e avô haviam nascido e vivido. Quando tinha pouco menos de 20 anos, mudou-se para casa dos seus avós, para ajudar a avó que na altura tinha alguns problemas de saúde. A mudança de ambiente coincidiu com uma fase em que Nuno começava a querer a sua independência, mas não tendo um trabalho fixo, não conseguia arrendar a sua própria casa, encontrando nesta mudança uma boa solução, tanto para si, como para a sua avó. Viveu com a sua avó durante cerca de ano e meio, altura em que a mesma acabou por falecer, e por essa altura contactou o senhorio, demonstrando interesse em ficar com a casa. Na altura (anos 1980) era possível os arrendamentos passarem dos avós para os netos e assim, Nuno ficou a viver na casa dos avós, no bairro da Mouraria, e pelo mesmo até hoje permanece.

Foi quando começou a viver no bairro que despertou para o pulsar do mesmo, e a forma como este pulsar era diferente nas várias fases do ano: na Primavera, por exemplo, as pessoas traziam mesas e cadeiras para a rua e aí almoçavam em família ou celebravam o aniversário das crianças, costume que ainda hoje se mantém vivo no bairro. O facto do valor da renda ser baixo e da casa já estar equipada, também contribuíram para a fixação de Nuno no bairro, bem como o quintal agradável que faz parte da casa, onde ainda hoje junta amigos para comer umas sardinhas no Verão. Ao mesmo tempo que tinha estima pela casa e uma relação afetiva com o bairro, também o começava a olhar atentamente, identificando as suas virtudes e os seus problemas.

Na década de 1980, a Mouraria era um bairro pobre, onde viviam muitas pessoas migrantes de zonas rurais do país, que vinham à procura de mais oportunidades de trabalho e de uma melhor qualidade de vida. As condições de habitação eram precárias, mas as pessoas sujeitavam-se porque tinham trabalho em Lisboa, as mulheres como empregadas domésticas das famílias burguesas, e os homens como operários da construção civil, nomeadamente. O grau de iliteracia era muito elevado, tratava-se de um bairro humilde, simples mas genuíno. Existia uma proximidade entre as pessoas e um grande espírito de vizinhança, que Nuno acredita ainda existir atualmente, independentemente da diversidade social e étnica que existe e caracteriza a Mouraria.



“De certa forma, a Mouraria é um bairro de migrantes, não é só de imigrantes. Grande parte das pessoas que vivem na Mouraria são indivíduos que vêm das Beiras, do Minho... E que vieram para Lisboa à procura de uma vida melhor. Se ainda hoje se fala tanto da necessidade de descentralização porque realmente está tudo muito centralizado no litoral, imagina o que era há 30 ou 40 anos atrás, quando tanta gente vinha para cá à procura de trabalho. Se pensarmos na vida há 40 anos atrás, Lisboa era um espanto para quem vinha da província, porque realmente era uma cidade que se podia considerar muito mais desenvolvida.”



Nuno Franco assistiu de perto ao crescimento e transformações do bairro da Mouraria nos últimos 40 anos, e de um ponto de vista territorial, sinaliza as mudanças instauradas com o plano QREN da Mouraria (2009), que abrangeu também a zona do Intendente, e do trabalho posterior desenvolvido pela Junta de Freguesia, liderada pelo Dr. Miguel Coelho. Do ponto de vista social, começou a ver-se uma transformação lenta no bairro pela altura do 25 de Abril (1974), sendo que depois da revolução e do fim das colónias, muitas pessoas regressaram a Portugal e instauraram-se no bairro, onde abriram os seus negócios que, nas décadas seguintes, foram passando de mãos em mãos. Na década de 1980, chegou o primeiro contingente de imigrantes, com pessoas oriundas da China e do Bangladesh, e só nos anos seguintes começaram a vir pessoas também do Paquistão. Desde o princípio que a Península do Industão tem grande expressão no bairro, e atualmente, o maior contingente a residir na Mouraria é precisamente composto por pessoas oriundas do Bangladesh, ultrapassando as 5000 pessoas.

Se a multiculturalidade é uma das características que torna o bairro da Mouraria um lugar único, também é um fator que despertou ao longo dos anos atitudes preconceituosas e xenófobas, vindas de uma determinada parte da população. A valorização da diversidade cultural, o empoderamento, inclusão e auxílio à fixação da população imigrante, têm sido dos principais objetivos da Associação Renovar a Mouraria, que opera no terreno desde o ano de 2008. Nuno acompanhou a fundação desta Associação, sonhada por Inês Andrade, sua amiga, com quem foi germinando a ideia até eventualmente, se avançar com a concretização do projeto. Se inicialmente as reuniões aconteciam em casa de um ou de outro, depois dos seus trabalhos, ou em espaços sociais do bairro como cafés ou restaurantes, depois da criação do blog onde discutiam assuntos relacionados com o bairro, foram notados pelas entidades políticas, até que a Câmara Municipal lhes arranjou um espaço fixo para trabalharem. Independentes politicamente, faziam um trabalho sobretudo de rua, auscultando a população e os seus problemas, apoiando as crianças em zonas mais complicadas, procurando soluções em conjunto com os moradores e dinamizando culturalmente o território, sendo que um dos principais eventos anuais era o arraial da Mouraria, que começou a atrair muitas pessoas até ao território e que continua atualmente a ser um sucesso.



“Quando nós, associação, pegámos nisto, pegámos num bairro completamente estigmatizado. Lembro-me que nessa altura, e estamos a falar assim de 2008, os meus amigos tinham receio de vir à Mouraria. Lembro-me de fazer churrascadas e festas no meu quintal, e de ter de vir buscar as minhas amigas mulheres cá abaixo ao metro, porque elas não se sentiam confortáveis em subir sozinhas pelas ruas... E a minha casa nem é muito longe do centro. Tinha de as ir buscar e trazê-las no fim, a não ser que houvesse outros homens que fossem com elas. A situação era de tal forma complexa que os jovens que aqui viviam, quando procuravam emprego, evitavam dizer que viviam na Mouraria. Porque viver na Mouraria tinha sempre esta conotação negativa, as entidades empregadoras ficavam logo assim reticentes... As pessoas queixavam-se muito, havia muita gente que tinha vergonha de dizer que vivia aqui na Mouraria.”



A Mouraria sempre foi um lugar pobre, onde existiram situações sociais complicadas como a prostituição e o tráfico de droga. Nuno relembra que quando a Associação começou a trabalhar em 2008, operava sobre um território completamente estigmatizado, apesar da sua centralidade na cidade de Lisboa. Atualmente o paradigma é diferente, continua a existir pobreza no bairro, mas os principais desafios prendem-se com dificuldades habitacionais que advém da gentrificação do bairro e da cidade, e exploração da população imigrante, tanto a nível laboral, como habitacional e alimentar. Nuno conhece bem estes e outros problemas dos habitantes da Mouraria, pois acompanha de perto a vida dos mesmos, enquanto mediador comunitário da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior. O seu principal trabalho ocorre no terreno, sinalizando situações que precisam de respostas e direcionando os pedidos para quem pode na prática ajudar. Este cargo único, existente apenas nesta Junta de Freguesia, surgiu na sequência do trabalho de Nuno na Associação Renovar a Mouraria e da implementação do plano QREN, focado no desenvolvimento comunitário e social do bairro. Nuno conta que na altura, o Dr. João Menezes, diretor municipal de ação social, o convidou a trabalhar num dos gabinetes da Junta de Freguesia, gerindo o trabalho das várias associações locais e foi desta forma que surgiu e se criou o cargo de mediador comunitário. Ao longo dos anos, Nuno foi aprendendo a ser mediador, através do trabalho no terreno, do diálogo com as pessoas, do trabalho conjunto e de escuta ativa com os técnicos com quem colabora. Atualmente acompanha cerca de 365 idosos, através de visitas, telefonemas e contactos de rua. Além disso, acompanha tudo o que acontece no espaço público do bairro, bem como os negócios que nele existem, mapeando a evolução dos mesmos, que tende a alterar-se rapidamente. Considera-se um desbloqueador de problemas, entendendo o seu trabalho como forma de proximidade das pessoas, e mesmo estando perto da idade da reforma, sabe que continuará a percorrer as ruas do bairro e a ajudar os moradores no que conseguir, porque o trabalho social é o que mais o preenche, é o que gosta realmente de fazer.



“O facto de ir sinalizando os vários casos e remetendo-os para quem na prática pode ajudar, facilita aqui o processo de ajuda à população. Mas depois também trabalhamos todos em rede, porque também não sou Deus, muitas vezes são as associações que me contactam porque sinalizaram alguém e damos depois seguimento à situação aqui. Vejo-me como um desbloqueador de problemas, até costumo dizer que aquilo que faço é acupuntura urbana!”