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Terra sonâmbula [excerto]
Mia Couto
Escolhido por Gilana Sousa
2020

Conteúdo retirado do livro Mundos daqui e além mar, publicado pela Associação Renovar a Mouraria. Este poema poderá ser ouvido, na sua língua original, aqui.

#históriasdomundo
#mundonamouraria


Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem mestiçara-se de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul.

Aqui, o céu tornara-se impossível. E os viventes acostumaram-se ao chão, em resignada aprendizagem da morte. A estrada que agora se abre aos nossos olhos não se entrecruza com outra nenhuma. Está mais deitada que os séculos, suportando sozinha toda a distância. Pelas bermas apodrecem carros incendiados, restos de pilhagens. Na savana em volta, apenas os embondeiros contemplam o mundo a desflorir. Um velho e um miúdo vão seguindo pela estrada. Andam bambolentos como se caminhar fosse o seu único serviço desde que nasceram. Vão para lá de nenhuma parte, dando o vindo por não ido, à espera do adiante. Fogem da guerra, dessa guerra que contaminara toda a sua terra. Vão na ilusão de, mais além, haver um refúgio tranquilo.

Avançam descalços, as suas vestes têm a mesma cor do caminho. O velho chama-se Tuahir. É magro, parece ter perdido toda a substância. O jovem chama-se Muidinga. Caminha à frente desde que saíra do campo de refugiados. Nota-se nele um leve coxear, uma perna demorando mais que o passo. Vestígio da doença que, ainda há pouco, o arrastara quase até à morte. Quem o recolhera fora o velho Tuahir, quando todos outros o haviam abandonado. O menino estava já sem estado, os ranhos saíam-lhe não do nariz mas de toda a cabeça. O velho teve que ensinar-lhe todos os inícios: andar, falar, pensar. Muidinga se meninou outra vez. Esta segunda infância, porém, fora apressada pelos ditados da sobrevivência. Quando iniciaram a viagem já ele se acostumava de cantar, dando vaga a distraídas brincriações. No convívio com a solidão, porém, o canto acabou por migrar de si. Os dois caminheiros condiziam com a estrada, murchos e desesperançados.